Goste-se ou não, a verdade é que o ex-presidente Lula fez uma exibição de gala no Jornal Nacional, conforme análise do jornalista Reinaldo Azevedo, do Uol. Foi bem mais do que uma entrevista no que lhe disse respeito: uma exibição de destreza discursiva como raramente vi. E não! William Bonner e Renata Vasconcellos não colaboraram para a performance brilhante do candidato — não como “parceiros”, quero dizer. Fizeram o seu trabalho, com perguntas duras e contraposições que buscavam confrontar o interlocutor com escolhas pregressas e dificuldades futuras se eleito.
Ocorre que Lula estava preparado e não se deixou acuar em nenhum momento. Ultrapassou com extrema habilidade a bateria lava-jatista. E disse algumas coisas óbvias: houve corrupção. Há confissões e devolução de dinheiro. Lastimou, e também lastimo, que delatores tenham se dado bem e saído com o bolso cheio de grana. Mas ele próprio, hoje livre de processos, e o PT não interferiram nem no MPF ou na PF. Verdade ou mentira? Lamentou os desvios politiqueiros da operação. Sergio Moro virou ministro de Jair Bolsonaro e hoje é candidato a cargo eletivo, junto com Deltan Dallagnol. Acertou ao dizer que países investigam corrupção sem quebrar empresas. Fato? Fato.
Sem precisar se estender, evidenciava-se um MPF que hoje se subordina aos interesses do Planalto e uma PF que vive sob constante assédio. E não se conta aqui nenhuma novidade. O jornalismo, com feito, pode virar os seus arquivos do avesso e não encontrará interferência do PT nas investigações. Lula até listou, de cara, medidas que seu partido patrocinou contra a corrupção. Eu, por exemplo, na contramão de quase toda a imprensa, não gosto da Lei da Leniência como está e da Lei das Organizações Criminosas (a das delações) — 12.846 e 12.850, respectivamente. As medidas citadas são verdadeiras.
MENSALÃO E ORÇAMENTO SECRETO
Quando o mensalão foi levado à mesa, sempre sem defender desmandos, Lula contrapôs o chamado “Orçamento Secreto”. Qualquer pessoa que saiba um tantinho do riscado sabe que o primeiro é folguedo infantil perto do segundo. Nada menos de R$ 16 bilhões neste ano; há R$ 19 bilhões reservados para o ano que vem. Renata chegou a falar nas “moedas de troca” para governar, e o candidato fez um contraponto cirúrgico: “Não é moeda de troca; é usurpação de um Poder”. E emendou que Bolsonaro hoje não governa, tornando-se um “bobo da corte”.
Na mosca! E governa? Hoje, Ciro Nogueira e Arthur Lira estão mais desesperados do que o próprio Bolsonaro. Governam o Brasil sem precisar vencer eleição. A quem os empresários e banqueiros realmente procuram? Se alguém tem alguma demanda importante que requeira mobilização do governo, tem de falar com quem? Com Bolsonaro? Ele estará muito ocupado a sonhar com golpe de estado, pregando luta armada “em nome da nossa liberdade”. Lira e Nogueira cuidam do cofre.
Mas Lula é experimentado e sabe que não se governa o país sem o Congresso. Logo, lembrou que é preciso se entender com os partidos. Acertadamente, observou que o Centrão não é um deles. Sim, terá de ser com o tal “presidencialismo de coalizão”. Mas isso não expõe o governo ao risco da corrupção?, quiseram saber. Ora, sendo livre a investigação, toca-se a vida. O que não é possível é governar sem os partidos.
PGR
Lula não disse se indicará o futuro procurador-geral da República a partir de uma lista tríplice — COISA QUE A CONSTITUIÇÃO NÃO PREVÊ — ou se apelará a algum outro modelo. E fez muito bem. Como já escrevi aqui, Rodrigo Janot, da lista, jogou o país no buraco. Augusto Aras, fora da lista, aprofunda o desastre. “Males distintos e combinados”. É preciso, disse ele, que seja alguém que respeite as leis e o povo brasileiro.
Tenho natureza anticorporativista. A ANPR é um sindicato. Um governo não tem de se subordinar a uma entidade sindical de procuradores. De resto, o procurador-geral é chefe do Ministério Público da União, não apenas do MPF. No meu modelo, o PGR não precisa nem mesmo pertencer aos quadros do Ministério Público, a exemplo do que se dá nos Estados Unidos, querida imprensa brasileira. O cargo mais importante da República não pode derivar de uma corporação de ofício. Foi o MPF de Janot que nos jogou num vale de fascistoides ensandecidos. Vamos com calma.
GOVERNO DILMA
Lula deixou claro que não joga os seus ao mar. Reconheceu virtudes, mas também erros de condução no governo Dilma e lembrou que, se eleito, é ele quem volta a governar, não a ex-presidente — que, reitero, mereceu tratamento digno. E William Bonner lembrou os números ruins da gestão, que Lula circunstanciou, mas sem bater boca.
Aliás, note-se que o ex-presidente estava calmo e seguro, com discurso fluente, sem repetir palavras e sem grunhidos de hesitação de quem está à procura do melhor vocábulo. Mostrava-se muito seguro no papel e, como se costuma dizer, “muito presidencial”, para tristeza, certamente, de muita gente. Conseguiu até expressar uma leitura virtuosa do “nós contra eles”, apelando, como já fez outras vezes, ao jogo de futebol.
Em mais um acerto, disse que o Brasil era melhor, no que respeita aos embates ideológicos, quando PT e PSDB pareciam ser os, agora digo eu, “extremos possíveis”. Mas, por óbvio, as coisas não são assim hoje em dia. Tenho respeito por aqueles que não jogam os seus ao mar diante da primeira dificuldade ou da primeira oportunidade. De resto, Dilma sofreu um processo de impeachment sem que pese contra ela nem suspeita remota de corrupção. E caiu pelas mãos dos que engendraram o Orçamento Secreto de R$ 19 bilhões.
HUMOR
Se Lula guarda algum rancor, então esconde muito bem. Calmo, sereno, tranquilo. E se sabe que comeu o pão que o diabo amassou. Alguns acham que isso é coisa corriqueira. Penso que não. Lembro das perdas que sofreu desde que caiu em desgraça e acho que é preciso ter uma têmpera especial para suportar tantos desaires, incluindo 580 dias na cadeia, numa condenação sem provas, arquitetada por alguém que agora implora migalhas de atenção da “reacionaria” bolsonarista. Em nenhum momento se deixou desestabilizar. Equilíbrio emocional é importante a um político.
Alguém viu ali o líder que estaria disposto a mandar os empresários para a guilhotina, como Ciro Nogueira, o dono do centrão, tenta vender por aí? É claro que não. É que Nogueira não quer perder o comando do governo, cargo para o qual não foi eleito por ninguém.
Coube, aliás, ao próprio Lula desarmar uma arapuca óbvia: ao exaltar a divergência e a pluralidade, não precisou que outros citassem. Ele próprio deu como exemplos de monolitos incompatíveis com a democracia o PC Chinês e o PC Cubano. A partir dali, estava pronto para responder à questão da pluralidade e da democracia.
E, no acerto dos acertos, deixou claro que, se eleito, tocará o governo em parceria com Geraldo Alckmin, exaltado mais de uma vez ao longo da entrevista. “É mentira! Lula está enganando você. Ele fala do Alckmin para parecer um social-democrata, mas é um comunista carnívoro…” É mesmo, Ciro Nogueira?
Se um dia a social-democracia, com esse nome, vier a tomar corpo no Brasil, que tenha o discurso de Lula. Se eleito e se fizer porcaria, que arque com as consequências que isso pode ter num regime democrático. Repudio é gente que apela às armas para silenciar ou resolver as divergências.
Pior: os bolsonaristas nem poderão dizer que William Bonner e Renata Vasconcellos foram “bonzinhos” com o petista. Não foram, não! Mas é a velha história: uma entrevista é obra de quem pergunta, claro!, mas é sobretudo o produto de quem responde.
Lula não foi ao Jornal Nacional para que seus seguidores produzissem memes. Foi porque quer a Presidência da República.
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